Inês Caroline Reichert
Profª Líder do Projeto de Extensão Múltiplas Leituras, da Universidade Feevale

Desde 2004, a Feevale desenvolve ações de extensão junto à comunidade, através do projeto “Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade”. Contando com a participação de acadêmicos, especialmente estudantes das Licenciaturas, o “Múltiplas Leituras” tem como objetivo contribuir para a efetivação dos direitos e o reforço da identidade étnica da comunidade, a partir da atuação dos cursos de Pedagogia, Artes Visuais, História, Direito e Letras. Naquela tarde, em uma atividade que se repetiria por muitas vezes, um acadêmico do curso de Letras entrevistava e registrava a fala do professor Dorvalino, que, do lado de fora da sala de aula, lhe narrava os mitos e histórias que possuem os Kaingang sobre a origem do mundo. Sobre essas narrativas, as crianças desenharam suas interpretações, material que se pode apreciar no encarte especial produzido nesse número do Jornal Comunidade, em Português e Kaingang.
O leitor e a leitora conseguem, certamente, avaliar a inovação dessa publicação bilíngue, em Língua Indígena e Português, de circulação acadêmica e comunitária. No entanto, talvez desconheçam a dimensão e o significado dessa Autoria Indígena para a sociedade não-indígena e para os próprios povos indígenas, cuja transição de uma Língua baseada na Oralidade para a Língua Escrita foi resultado de longo processo de luta e conquista. É sobre esse processo que apresento algumas discussões, no sentido de situar os textos indígenas que agora se traz a público, contribuindo para uma compreensão sobre quem são esses autores que agora escrevem, como escrevem e o quê se escreve.
Uma primeira constatação se evidencia quando uma busca breve por publicações indígenas é realizada: essa é uma textualidade que não é solitária, mas que compõe uma emergente Literatura no país, juntamente com centenas de materiais escritos de diversas formas. Uma autoria que é composta hoje, além do uso da escrita alfabética, pela câmera de vídeo, pelo computador e em alguns casos, pela Internet. Assim, não apenas livros, mas jornais, revistas, desenhos, pinturas, vídeos, CDs, esculturas, mobiliários, entre outros artefatos da cultura, formam o acervo de Autoria Indígena contemporânea no Brasil.
E quem são os autores e as autoras dos Livros da Floresta, como os próprios indígenas gostam de chamar a seus textos? São os professores e as professoras indígenas que se tornaram autores e autoras para que seus estudantes tenham o que ler em língua indígena. Na paisagem constituída por essa história, a escola - uma instituição não indígena, estranha e exógena às culturas tradicionais - ocupa lugar central. A imagem de uma escola indígena como possibilidade de espaço de construção da autonomia indígena, isto é, como instituição de afirmação da especificidade indígena no Brasil, é recente, e pode ser localizada na década de 70. Fruto de um processo histórico do qual participaram diversos agentes, é preciso lembrar que antes desse período a escola era um instrumento colonizador, de ação antiindígena. Atualmente, a questão da presença da escola na aldeia como forma de dialogar com o mundo externo à comunidade indígena – e dessa forma, efetivar direitos – é presença constante na maioria das pautas de reivindicação de povos indígenas no Brasil.
Os professores e professoras estão a atuar como mediadores do acesso à escrita em suas comunidades, atuando na reorganização sócio-cultural e econômica como um todo. Pode-se afirmar que os povos indígenas, a partir da escola, estão a ocupar novamente o solo, posto que é da aldeia que se fala. De suas gentes, de suas línguas, de suas lutas, antigas e novas. Em relação aos povos indígenas, se escreve principalmente para que os mitos, histórias e línguas de suas culturas não se percam.
Nesse sentido, apesar de a Literatura Indígena estar sendo escrita da aldeia e para a aldeia, paradoxalmente, é em sua territorialidade que reside sua universalidade: se escreve também para ser reconhecido por um Outro. A Autoria Indígena publica e faz circular as palavras da comunidade para que esta se faça conhecer ao mundo que a envolve. A escrita é, portanto, política, porque reordena a coletividade e parte de uma territorialidade, conquistada ou simbólica. Uma escrita coletiva porque diz “nós somos assim, esta é nossa identidade”.
O que intentei demonstrar é a compreensão de que um texto se inscreve como literatura também como resultado de uma prática social. Para os povos indígenas, a produção de uma escrita - ou de um vídeo, ou de um site, qualquer que seja a forma que a palavra assume para circular – tem profundas e imbricadas relações com a história da reconquista e demarcação de suas terras, com a conquista da escrita e das práticas de leitura nas Línguas Indígenas, com a aquisição e o domínio da Língua Portuguesa, enfim, com as lutas do tempo dos direitos. A Literatura Indígena nasce, enquanto letra, de seu espaço e de sua territorialidade, e desse solo parte para a conquista simbólica do diálogo com o Outro, a sociedade não-indígena, abrindo, para nós, o acesso a Múltiplas Leituras.
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